sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Ser ou não ser nos tempos da existência líquida digital

(publicado originalmente como capítulo do livro "Nosso Ato responsável" da Pedro & João Editores, a partir de uma reflexão feita para o Rodas Bakhitinianas 2012 promovido pela GeGe - UFScar).

O sujeito do século XXI é o reflexo de um mundo individualista e cimentado pelo sistema. Ao mesmo tempo em que vive no social, no nós, o sujeito em seu simulacro busca a todo custo mostrar seu eu e com isso se contrapor ao poder do outro. O mundo competitivo em contraponto ao humano. O ato ético na contemporaneidade aparece envolto pelo senso estético que o mundo atual demanda.

O sujeito contemporâneo fragmentado pela somatória de comportamentos e de influências sociais das mais diversas perde sua personalidade. O viés neoliberal que nos circunda no contemporâneo é regido pela esfera econômica e com isso o sujeito tem dificuldade de exercer sua autonomia. A indústria cultural assola ideologias. O enfraquecimento da autonomia a partir do senso comum de um mundo voltado para o sistema onde o que importa é produzir, lucrar, consumir, trabalhar sem parar, onde o sujeito é um mero peão do sistema também torna o sujeito desresponsabilizado pela própria conduta. O sujeito contemporâneo se veste de simulacros da indústria cultural. A construção de ethos do sujeito é regida pelas tendências da indústria cultural e pelas regras sociais impostas pelas mídias de massas. A internet auxilia na construção desses simulacros. O real life confunde-se com a vida em si. O sujeito do facebook prefere acreditar que aquele avatar construído por ele é realmente seu eu. Parece melhor e mais fácil acreditar nesse simulacro digital do que tentar entender o seu próprio eu. Aquele sujeito que escreve a partir de um simulacro de um avatar reflete na internet uma ideologia de seu eu tipificado e cria seu simulacro de acordo com as tendências da industria cultural.

Hoje o sujeito vive o nós, o coletivo, em seu ambiente de trabalho. As correrias da vida no mundo contemporâneo reduzem o universo do homem urbano ao seu mundo do trabalho. Ele acorda e dorme trabalho. Quando está em seu escritório ele acredita estar vivendo o nós. A coletividade do escritório confunde-se com a coletividade da cerveja com os amigos no fim do expediente.  O assunto nos dois espaços sociais do sujeito contemporâneo quase sempre são frutos da indústria cultural. Seja a novela das oito ou o jogo de futebol do seu time, ou mesmo a política atual, todos os assuntos são regidos pela indústria cultural. É a ideologia da indústria cultural que diz o que deve ser falado, o que deve ser pensado. Quase sempre opinião desse sujeito acompanha o que o jornal de grande circulação escreveu em seu artigo de opinião do dia anterior, ainda que esse sujeito nem leia jornal. A ideologia do cotidiano regida pela indústria cultural. O dialogismo ocorre entre o jornal do dia, os assuntos no escritório, a nova lei assinada pelo governo, a revista de fofoca da semana, o programa de TV mais assistido e o que se está falando no Facebook. Os enunciados da vida são assuntos na mesa do bar no fim do expediente. A ideologia é regida por regras claras das mídias de massa e o sujeito atua mesmo sem saber como continuação da linha de produção da indústria cultural.

O controle operacional da vida já aparecia nas entrelinhas dos produtos da indústria cultural no século XX. Como na cena do filme de Kubrick “2001 uma odisseia no espaço” onde o sujeito já perdido entre o que foi um dia e o que as máquinas a sua volta o transformaram, um simulacro de sujeito. Outro bom exemplo vemos no filme “The Wall” da banda Pink Floyd, onde as crianças são transformadas em pequenos operários, em robôs do ensino. A indústria cultural e a massificação das mídias ditando as regras sociais, as modas, o senso comum e providenciando que a informação se espalhe ainda mais rápido: consuma, seja, conquiste! Essa competitividade da contemporaneidade aliada à velocidade da informação faz com que a cada nova geração a trilogia ‘consuma, seja, conquiste’ se torne ainda mais forte. O eu sobrepondo-se cada vez mais sobre o nós. A deterioração das relações pessoais incidindo na personalidade, trazendo cada vez mais a impessoalidade. O coletivo dá lugar aos interesses pessoais em função do consumo.

A internet ainda que nos traga uma sensação de democratização da força social pode ser também uma ferramenta de construção de simulacros ainda mais perigosos. Uma força que pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal do social. Os verbos ‘trollar’, ‘flodar’, e expressões como ‘dar unfollow’ são largamente utilizados pelos usuários das redes sociais. Todas usadas como formas de ameaças e atitudes negativas de socialização na internet. O simulacro criado a partir de avatares seja em forma de nomes sem ligação com personas do mundo real, ou mesmo fotos que não denunciam a identidade do sujeito, possibilitam que essa violência virtual seja ainda mais possível.

A internet, como já dissemos, ainda que traga uma carga democratizadora ao social também possibilita o fortalecimento de arenas virtuais de batalha pelo poder e na maioria dos casos ligados ao fator cultural. Casos como dos debates sobre o que aconteceu no bairro do Pinheirinho em São José dos Campos no final de 2011 são uma clara imagem do poder da internet de gerar grandes arenas, neste caso de luta política. O signo ideológico ou como chamam na internet a  hashtag #Pinheirinho permaneceu por vários dias entre as mais citadas do site twitter. Bastava clicar sobre a hashtag em qualquer página para cair numa arena de lutas ideológicas das mais assustadoras. A hashtag #Pinheirinho poderia levar o sujeito a uma arena onde aconteciam desde pedidos de ajudas de moradores do bairro sitiado em tempo real, a pessoas criticando a atuação do governo, a pessoas apoiando o governo, a brigas pessoais sobre pontos específicos sobre o assunto e até a adolescentes que utilizavam a tal hashtag em frases sem sentido algum com o contexto apenas para se divertir um pouco. O poder da internet de possibilitar que um assunto extrema seriedade e de enorme importância social e política se transforma-se num jogo de adolescentes, ou mesmo discussões fortíssimas sem que nada acontecesse com qualquer uma das partes envolvidas. Num só clique aquilo tudo poderia ser apagado.E ainda que alguém desse um “print” e salvasse aquelas discussões assustadoras seria difícil que alguma ofensa de cunho pessoal pudesse afetar a algum dos atores envolvidos na arena.
A responsabilidade de cada enunciado na internet torna o ato ético fragilizado. Com apenas um clique podemos perder totalmente seu valor institucional. Ainda que no ato da produção de cada enunciado cada frase, cada signo ideológico tivesse atingido o outro de alguma maneira, na esfera institucional, ou no tal mundo do direito, raramente um enunciado poderia afetar algum dos envolvidos. Com isso o ser na internet atua seguro dentro de seu simulacro. Se desresponsabiliza pelo que enuncia.

Neste mundo novo onde a arena de informação vai muito além das televisões, dos rádios do século XX, a produção cultural acaba dialogando com as novas tendências. O artista, aquele que transita entre a vida e a arte, no século XXI surge de dentro de um simulacro envolvido pelo que é delegado pela indústria cultural e mostra não apenas o que a vida o faz produzir mas sim o que o mercado o faz produzir. A produção de cultura no Brasil vive esse paradoxo. Como produzir arte, arte criativa, sem amarras, num Brasil que cada vez mais se entrega às demandas da industria cultural? Como produzir arte no Brasil onde as novas gerações estão entretidas com produtos tecnológicos e novidades digitais que se renovam a cada dia?

Uma das principais características da cultura ocidental é a busca pela autonomia da informação. A cultura seja ela vista como fator civilizatório ou como a conservação da produção criativa de um dado povo é de alguma forma uma busca pela autonomia da informação. Porém graças aos interesses da indústria cultura o caminho tem sido justamente o inverso.

Desde o advento das leis de incentivo à cultura no Brasil nos anos 80 o produtor de cultura brasileiro, seja ele o artista, o artesão, o ator, o músico, vive no paradoxo entre viver de arte ou viver para criar a arte. As leis culturais no país surgiram no início do período de redemocratização, onde a liberdade era evocada como uma possibilidade para a produção artística no Brasil de maneira livre após tensas décadas de poderio militar (leia-se era Vargas mais período de ditadura pós 64). Porém essas leis culturais traziam junto com a ideia de liberdade criativa também o viés neoliberal agregado onde a liberdade ofertada tinha um preço, o de entregar-se aos caprichos da indústria cultural.

O viés liberal das leis de incentivo à cultura no Brasil e o vinculo destas leis com o patrocínio de empresas privadas obriga o artista a produzir uma arte voltada aos interesses do mercado. A arte vira um produto de consumo. O patrocinador que paga para que essa arte possa ser produzida tem o poder de cuidar do processo de criação de perto durante a execução de um projeto cultural. Na contemporaneidade arte e vida continuam não sendo a mesma coisa, mas na unidade da responsabilidade do artista nem sempre se tornam uma coisa só, pois é a indústria cultural que rege a arte no século XXI. O artista se torna uno com as demandas da indústria cultural que são regidas pelas mídias de massa e as infinitas pesquisas sobre o consumidor.

Esta tendência também pode ser observada no âmbito político. As propagandas eleitorais seguem estética do vídeo clip. Slogans, figurinos, cortes de cabelo, inclusive pequenos detalhes como logo marcas dos partidos e cores atuam fortemente como signos ideológicos regidos pela indústria cultural. A campanha de Barack Obama foi um bom exemplo dessa massificação política utilizando estratégias estéticas da indústria cultural. Nas atuais eleições, mais especificamente na cidade de São Paulo também podemos observar essa tendência, chegando ao ponto de um dos principais candidatos utilizar como música de campanha um dos maiores sucessos da indústria cultural brasileira das últimas décadas.

Ser um apocalíptico ou um integrado, ser um autor-criador ou um autor-contemplador no século XXI pode ser bem diferente do que era no não tão distante e analógico século XX. A velocidade das mudanças sociais ampliado pela nova dimensão digital ainda nos traz diversas questões. O que nos parece muito provável é que nas próximas décadas ainda não seja possível responder a todas elas.  Porém o que nos parece claro é que as novas gerações estão cada vez mais a mercê desta indústria cultural regida pelos monopólios corporativos que continuam buscando nos dizer o que vestir, o que comer, para onde viajar, o que assistir nos cinemas, quais músicas ouvir, etc. O que parece certo é que continuaremos com a trilogia “Consuma, seja, conquiste” comandando nossas vidas e sempre começando pelo 'consuma'. Até que o sistema capitalista reine sobre a terra será assim, seja pela TV, seja pela internet, ou mesmo pelo celular, ou por qualquer outra mídia móvel que vier daqui pra frente, consumir ainda será responsável por tudo o que você deve ser.

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